Segurança hídrica

no planeta água

Se água é sinônimo de vida, como fazer para que ela continue existindo em quantidade
e qualidade suficientes e quais são as iniciativas que já existem para garantir isso
?

Imagine que existe uma mulher que está prestes a ir ao médico. Imagine que ela se chama Clara, por exemplo, ou Ana, ou como você quiser chamá-la. Imagine que, no caminho para o consultório, ela passa por uma praça muito bonita, arborizada, cheia de pássaros, com um chafariz lindíssimo onde jorram espirros de água que produzem mini arco-íris sob a luz do sol das 10 horas da manhã. Imagine que a mulher, que você (e só você) sabe como se chama, passa por uma feira livre, onde vendem todo tipo de fruta, existem caquis apetitosos se disfarçando de tomates para quem não os conheceu ainda; e nas bancas estão expostos abacaxis, acerolas e cajus. Imagine que a mulher passa por um negócio de livros usados onde são vendidas relíquias, verdadeiros tesouros esquecidos pela humanidade. Mas imagine que, com os últimos exames de saúde nas mãos, ela passa por tudo isso indiferente. Como quem tem algo mais importante para fazer. 

Nossa protagonista chega finalmente ao consultório, onde o médico, com os papeis e radiografias na mão, faz uma cara de desgosto e diz que tem algo muito estranho ali, pedindo que ela faça mais alguns outros procedimentos. A mulher sai do consultório desolada e, voltando para casa, sente uma profunda tristeza porque tem certeza de que em pouco tempo não poderá mais ler os livros antigos da livraria, comer caquis que parecem tomates ou admirar as pequenas gotas de luz nas águas do chafariz da praça. Sente vergonha de si mesma por não ter aproveitado um pouco mais tudo aquilo.  

O que a história dela tem a ver com a água? Nada. 

E tudo ao mesmo tempo. 

A crise hídrica é um diagnóstico real (assim como todos os demais campos das mudanças climáticas), que não sabemos quando chegará por completo. O que sabemos é que a vida que nos resta está diretamente ligada a isso. Coisas muito simples, como escovar os dentes, beber água e cozinhar poderiam estar comprometidas. A capacidade de plantar ou produzir alimentos em pequena ou grande escala, de colocar fábricas das mais diversas finalidades em funcionamento também. O que está em jogo, no fim das contas, assim como o chafariz da praça, as frutas da feira e os livros antigos, são as coisas mais corriqueiras que normalmente passam despercebidas. 

Quando escovar os dentes, tomar banho, cozinhar, plantar e produzir alimentos ou qualquer outro tipo de bens industrializados não é um problema, é sinal de que existe algo chamado “segurança hídrica”: a possibilidade de haver água potável à disposição, em quantidade e qualidade necessárias. É uma forma de garantir que a falta d’água não “afete as suas necessidades básicas do dia –a dia, seja você um indivíduo, um coletivo ou uma instituição. Segurança hídrica é quando a gente está ‘de barriga cheia e pode procurar outra coisa pra fazer’, vamos dizer assim”, explica Bruno Boni Teixeira, assessor de água e clima no Instituto Agir Ambiental. 

A pergunta, portanto, é: quais são as estratégias que já existem por parte do estado e da sociedade civil para garantir que todos nós vivamos em um quadro de segurança hídrica, e como podemos participar ativamente disso tudo? 

Questão de segurança

Antes de qualquer coisa, é importante definir bem sobre o que estamos falando. De acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA), Segurança Hídrica envolve ainda outros aspectos. Além de estar atrelada à disponibilidade de água de qualidade e em quantidade suficientes para satisfazer as necessidades humanas e atividades econômicas, também faz parte desse conceito a conservação de ecossistemas aquáticos; a gestão de riscos a que a população e o meio ambiente estão sujeitos em casos extremos de secas e cheias; assim como a prevenção para falhas ou gestão ineficaz, no caso de obras públicas, por exemplo, envolvendo a gestão da água. 

Dentre os fatores que impactam a segurança hídrica está o aumento populacional não planejado, que gera uma demanda por água maior do que o que se pode oferecer no espaço urbano, o crescimento econômico não alinhado a práticas sustentáveis, e o advento de fenômenos climáticos drásticos, que são resultado das mudanças climáticas. “A água está muito ligada à emissão dos gases de efeito estufa. Antes, as chuvas aconteciam de maneira mais equilibrada. Agora, cai tudo de uma vez. O volume de chuva que antes estaria distribuído em um mês, cai em dois dias, e o resto do mês fica seco”, explica Rafael Girão, coordenador de sustentabilidade do Instituto Agir Ambiental.

As dimensões da segurança hídrica

As sociedades usufluem de segurança hídrica quando têm uma gestão integrada de seus recursos e capacidade para satisfazer suas necessidades com base em cinco dimensões:

Ambiental

Capacidade para preservar e restaurar a água em ecossistemas, rios, lagos, reservatórios e aquíferos

Econômica

Fornecimento suficiente para apoiar as atividades econômicas na agricultura, indústria e energia

Climática

Construir comunidades resilientes e adaptáveis às mudanças climáticas que garantam o abastecimento em caso de possíveis desastres potenciais

Urbana

Projeto e desenvolvimento de cidades saudáveis, dinâmicas e habitáveis com uma forte cultura da água

Doméstica

Cumprimento das normas de saneamento da água para seu consumo em residências urbanas e rurais

No Brasil, em dezembro de 2016, por exemplo, 132 cidades do Nordeste, que conta com uma população de 1,5 milhões de pessoas, encontrava-se em esgotamento de abastecimento e 812 municípios eram abastecidos por caminhões-pipa, o que gerou um custo de mais de 1 bilhão de reais ao Governo Federal, como lembra o texto de lançamento do Plano Nacional de Segurança Hídrica feito pela Agência Nacional de Águas (ANA) em 2019. No mesmo período, no sudeste do país, a crise hídrica afetou a bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul e a região metropolitana de São Paulo, gerando impactos no abastecimento de água para a população e para os setores de produção industrial, o que acarretou, dentre outras coisas, em um grande prejuízo econômico. 

Segundo levantamento da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), divulgado em 2020, a escassez de água afeta mais de 3 bilhões de pessoas em todo o mundo, que vivem em áreas agrícolas. Nas últimas duas décadas, a média de água potável disponível por pessoa diminuiu em mais de 20%. 

Existem maneiras reais de garantir a segurança hídrica? 

De acordo com o texto do Plano Nacional de Segurança Hídrica, é preciso implantar infraestrutura hídrica e o aperfeiçoamento da gestão de recursos hídricos, tais como planejamento, controle do uso da água, monitoramento, operação e manutenção de sistemas hídricos, além de medidas para gestão de riscos, e isso abrange um conhecimento aprofundado da vulnerabilidade e da exposição do ambiente diante de algum evento”.  

Ainda segundo o documento, um cenário ideal de segurança hídrica é aquele em que existe uma infraestrutura planejada, dimensionada, implantada e gerida adequadamente, capaz de atender tanto ao equilíbrio entre a oferta e a demanda de água quanto a situações contingenciais, fruto da vulnerabilidade a eventos climáticos extremos, como secas prolongadas e enchentes.  

Mesmo que o Brasil conte com grandes bacias hidrográficas e o Aquífero Guarani (que é segunda maior fonte de água doce subterrânea do mundo, com 1,2 milhões de km²), a disponibilidade de água potável e a forma de gestão desse recurso varia de região para região.  

O país tem uma tendência de perda significativa de água em 8 das suas 12 regiões hidrográficas, em todos os biomas. O estado com maior prejuízo absoluto e proporcional de superfície de água (no período entre 1990 e 2020) foi o Mato Grosso do Sul: a redução foi de 57%, atingindo principalmente o Pantanal. Os dados são do mapbiomas.org. 

“Mas, independentemente de onde estamos no Brasil, uma coisa é certa: todos os lugares estão enfrentando questões com as mudanças climáticas. Por isso é importante pensar na gestão da água, mas de uma maneira que leve em consideração toda a cadeia, não só a maneira como você consome e descarta, mas também a forma como a água está sendo produzida. Quem são os produtores? Como estão as nascentes? Elas estão conservadas? Como está o escoamento e a infiltração da água no solo?”, reflete Bruno Teixeira. 

Cidadania ativa: a água é coisa nossa! 

Uma alternativa interessante para o envolvimento direto e participativo na gestão da água podem ser os Comitês de Bacias Hidrográficas, que fazem parte do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, e funciona como um trabalho conjunto entre o setor público e a sociedade civil. Esses comitês são como um “parlamento das águas”, na definição da ANA – Agência Nacional de Águas, onde há espaço para debater e definir o uso da água naquela região, compartilhando as responsabilidades da gestão entre poder público e sociedade civil. Como há muitos interesses em relação ao uso da água, conflitos e riscos à garantia desse recurso, os comitês atuam para mediar essas necessidades, construindo coletivamente soluções que garantam a segurança hídrica da população. 

“Comitê é um termo que indica uma comissão, junta, delegação ou reunião de pessoas, para debater e executar ações de interesse comum. Bacia hidrográfica é um território delimitado por divisores de água cujos cursos d’água em geral convergem para uma única foz localizada no ponto mais baixo da região. Unindo os dois conceitos: Comitê de Bacia Hidrográfica (CBH) significa o fórum em que um grupo de pessoas, com diferentes visões e atuações, se reúne para discutir sobre um interesse comum – o uso d’água na bacia”, explica a ANA. 

Faz parte das atribuições de um comitê como esse as discussões e negociações democráticas para avaliar os diferentes interesses sobre os usos das águas naquela bacia hidrográfica específica. O comitê possui, inclusive, poder de decisão e cumpre papel fundamental para a elaboração de políticas públicas relacionadas à gestão da água, principalmente em locais mais sujeitos a escassez ou desastres.   

O Agir Ambiental é um dos membros titulares do Comitê das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), no segmento organizações civis.  

Esse tipo de iniciativa, os Comitês de Bacias Hidrográficas, são fruto do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, que nasceu com a implementação da lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que definiu a Política Nacional de Recursos Hídricos. Conheça as atribuições de um Comitê de Bacias Hidrográficas no infográfico abaixo: 

  • Tomar decisões

    Possibilidade de se posicionar diante dos conflitos acerca do uso da água

    Aprovar o plano de recursos hídricos da bacia em questão

    Estabelecer estratégias e mecanismos de cobrança pelo uso da água

    Pensar em critérios para rateio do custo de obras envolvendo a água

  • Gerar propostas

    Acompanhar a implementação do plano de recursos hídricos

    Propor estratégias para a implementação das metas contidas no plano

    Sugerir os valores a serem cobrados para o uso dos recursos hídricos

    Propor a implementação de áreas de restrição de uso para proteger e preservar a água

    Propor as prioridades da aplicação dos recursos vindos da cobrança do uso da água

  • Promover debates

    Conectar atuação de entidades competentes e relevantes para os temas relacionados à água

    Servir como impulso para a geração de debates que possam agregar informações e ideias necessárias

Saiba como se envolver concretamente nessas iniciativas através da página oficial dos Comitês de Bacias Hidrográficas da Agência Nacional de Águas (ANA). No site, estão disponíveis todos os comitês que existem atualmente, sejam em nível estadual, como o CBH do Alto Tietê, em São Paulo, ou interestadual, como o CBH do Rio São Francisco.  

Recarregue e entre no ciclo 

Inspirado na Economia Circular e em parceria com a Fundação Avina, o Agir Ambiental criou uma metodologia de recarga hídrica que embasa os projetos Recarrega. “O foco do projeto é a recarga hídrica: como devolver a água para a bacia hidrográfica. Mas a gente pensa o conceito de bacia hidrográfica de uma maneira mais integrada, levando em consideração, por exemplo, as comunidades e indústrias presentes no território, quais são as atividades econômicas, o tipo de clima, solo e fauna de cada região, e a partir disso detectamos as áreas mais prioritárias, as que têm alguma área de preservação, por exemplo, e criamos estratégias para manter essa mata de pé”, explica Rafael Girão. 

“O Recarrega é uma forma de estimular essa visão de circularidade da água, não só passando pelas questões mais comuns, os aspectos urbanos e de consumo domiciliar, mas também em tudo o que acontece antes.  A gente vê a área que tem interesse de aplicar o método, faz um diagnóstico e encontra as melhores soluções, que vão contribuir com uma melhor recarga e conservação dos recursos hídricos da região”

– Bruno Teixeira

Para sair da história 

Se você, assim como a protagonista do exercício de imaginação que abriu esse nosso debate, passou de alguma forma a enxergar a beleza das coisas simples, como ter água potável disponível a qualquer hora, por exemplo, e não quer perder esse direito, e sobretudo se você quer que as próximas gerações também tenham essa mesma experiência, algumas dicas de ações concretas podem te ajudar a acelerar a mudança de consciência para desacelerar a mudança climática.

1

Consumo consciente

Comprar o necessário, privilegiar iniciativas de economia circular, como brechós, sebos ou negócios e marcas que oferecem a possibilidade de retornar os recipientes das embalagens, por exemplo. Produzir novas mercadorias envolve o uso de uma quantidade imensa de água, de modo que reutilizar, reciclar e repensar o que compramos e descartamos representa uma economia hídrica muito grande.

2

Privilegiar produtores locais

Consumir produtos da região (e sobretudo se forem orgânicos e provenientes da agricultura familiar) representa uma grande economia de combustível fóssil que seria usado no transporte das mercadorias. Menos combustível fóssil significa menos gases de efeito estufa sendo lançados para a atmosfera e menos elementos químicos jogados no solo. Tudo isso ajuda a regular o ciclo das águas. Saiba mais sobre o consumo de orgânicos nesse podcast:

3

Transporte público ou alternativo

Na mesma linha do tópico anterior, quanto mais transporte público você usar, menos carros circulam, menos gases de efeito estufa são produzidos. Ficar de olho nas políticas públicas voltadas para o transporte também é uma boa estratégia. 

4

Economia de água

Fechar a torneira, regular o banho… Todas essas coisas que a gente costuma aprender na escola realmente ajudam.

5

Tomar decisões

Cuidar do que é nosso, o mundo, no caso, pode ser prazeroso. Todo cuidado envolve escolhas e todas as escolhas envolvem renúncias. Mas isso faz parte da vida. Coragem!

Expediente

Edição | Bélit Medeiros
Reportagem | Gustavo Monteiro
Infografia e design gráfico | Tayná Gonçalves
Foto de capa |
unsplash