Combater as mudanças climáticas pode parecer complexo. Mas a construção de um mundo socialmente justo e ambientalmente adequado se dá no nosso cotidiano, em contextos bem mais específicos: as nossas cidades.
É nelas que os principais efeitos do aquecimento global e da degradação ambiental se fazem sentir, através de enchentes, deslizamentos, poluição dos rios e do ar, entre outros problemas. É nelas, portanto, que devemos buscar as soluções. Nesse sentido, cada eleição municipal surge como momento privilegiado de reflexão.
Quais são as atribuições do poder público municipal? De que instrumentos dispõem os prefeitos? É possível conciliar desenvolvimento e conservação? Para refletir sobre essas e outras questões, entrevistamos a geógrafa Camila Barbosa, diretora de Mobilização Institucional do Instituto Agir Ambiental. Mestre em análise ambiental pela Unesp e consultora de diversos organismos internacionais sobre planos diretores municipais e gestão de riscos ambientais, ela evidencia que o voto consciente e as ações cotidianas de cada cidadão podem fazer uma grande diferença no destino de nossas cidades.
Estamos nos aproximando de uma eleição municipal. Que medidas um prefeito pode tomar para mitigar o impacto da ação humana no aquecimento global?
O poder público municipal tem que conhecer o cenário de emissões das principais atividades econômicas em seu território e definir quais são as metas viáveis de redução dessas emissões. E isso deve estar coerente com as metas estaduais. Além disso, também é importante conhecer as potencialidades e as fragilidades que o município apresenta nesse enfrentamento e quais são as consequências econômicas, sociais e até culturais desse processo. Após essa primeira fase de diagnóstico, ele vai traçar um plano de ação das reduções das emissões e buscar essa articulação com as esferas estadual e federal. O prefeito tem esse papel de articulação também dentro do município, com os setores das atividades econômicas, empresariado, com os agricultores, com a população como um todo. E dentro da esfera administrativa as secretarias tem que refletir toda essa proposta. É um problema transversal, que está relacionado às secretarias de agricultura, de habitação, de saúde. Está na alçada dela, por exemplo, propor ações para que a redução das emissões dos gases do efeito estufa aconteça através da alteração dessas atividades, como a adoção de uma frota menos poluente, de um modelo transporte público eficiente, incentivo ao uso da bicicleta. O município tem que incluir essa questão climática no seu Plano de Mobilidade. E de forma paralela a isso o prefeito tem a responsabilidade de preparar o município para lidar com os efeitos das mudanças climáticas, que já são inevitáveis. Já existem modelos preditivos que indicam um aumento da frequência de eventos extremos, como chuvas, secas, geadas, aumento do nível do mar. Então essa preparação e essa gestão de risco são muito importantes. Um instrumento-chave nesse sentido é o Plano Municipal de Mudança Climática, que contém um diagnóstico e a proposta de enfrentamento. Além disso, a política municipal de mudança climática deve estar presente em todos os outros instrumentos. No Plano Diretor, que é o principal mecanismo de ordenação territorial, no Plano de Habitação, uma vez que sem uma política efetiva de habitação e regularização um maior número de pessoas vai estar exposto à ocupação de áreas de risco, que são vulneráveis às mudanças climáticas, a eventos catastróficos. Outro instrumento que todo município brasileiro deveria ter, mas não tem, é o Plano de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres, que é obrigatório para os municípios que são diagnosticados com potenciais áreas de risco.
Como os cidadãos podem contribuir para evitar esses problemas?
Os cidadãos sem dúvida têm um papel extremamente relevante no enfrentamento das mudanças climáticas. A escolha de um representante alinhado com esse princípio de mitigação é algo extremamente importante. Nesse momento de eleições municipais, é importante que a gente chame os candidatos para essa discussão, reivindique deles que se posicionem nesse sentido. Infelizmente pouquíssimos municípios possuem uma agenda climática, principalmente as grandes metrópoles. Quando o prefeito fala em expansão urbana, regularização, habitação, abastecimento, atividades econômicas, ele tem que pensar na água e como isso vai se colocar nos próximos anos. Se o seu candidato não traz esse questionamento, aproveite esses temas transversais para chamar a atenção dele. Além disso, o cidadão deve refletir sobre como o seu padrão de vida relaciona-se com as mudanças climáticas. O que é possível fazer a partir da sua cidade é uma questão muito importante. Mas, antes, é importante refletir sobre o que é possível fazer a partir da sua casa. São atitudes muito simples e viáveis, como padrão de consumo, a adoção de compostagem caseira, a adoção de transporte público no dia a dia, o uso da bicicleta. Não adianta uma política de implantação que estruture tudo isso se a população, culturalmente, não refletir sobre a sua ação.
Boa parte dos municípios brasileiros localiza-se em áreas de Mata Atlântica. Como recuperar áreas fortemente degradadas e evitar a perda das áreas remanescentes desse tipo de vegetação?
O bioma Mata Atlântica originalmente ocupa toda a costa brasileira e sofre pressão da ocupação humana desde o período colonial. É nessa região que nós temos as maiores cidades do país e é onde há maior concentração populacional – aproximadamente 70% da população está nesse bioma. Também é um bioma que se encontra fortemente degradado. Restam apenas 12% de Mata Atlântica preservada. E apesar de todo esse período de degradação, somente em 2006 é que foi promulgada uma lei de proteção dessa vegetação, chamada Lei da Mata Atlântica (11.428/2006). Essa lei instituiu o Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica, que mostra como o município é fundamental para colocar em prática toda a política nacional ambiental. É na esfera municipal que tudo acontece. Infelizmente, só alguns municípios têm esse documento e menos de 300 deles foram implantados ou estão em fase de implementação.
Como conciliar o desenvolvimento urbano com a preservação ambiental?
É impossível pensar o espaço urbano com qualidade ambiental sem pensar na gestão municipal presente, com uma prefeitura que realmente controle, regule o uso e a ocupação do solo, com base no reconhecimento das suas condições ambientais naturais e no princípio da equidade, que é justamente garantir que todos os cidadãos tenham as mesmas condições de qualidade e segurança no território urbano. Sempre que a gente tem uma ação humana sobre um sistema natural, a gente tem uma situação de desequilíbrio. Se essa ação não cessa, se a cidade sempre continua a se desenvolver, o desequilíbrio do sistema natural tende a ser irreversível. Mas se a cidade é pensada a partir do respeito aos sistemas naturais, ao reconhecimento das condições naturais, é possível, sim, minimizar o impacto dessa ocupação. Desse modo, pode-se estabelecer, ou ao menos vislumbrar, um novo equilíbrio. Francis Bacon afirma que nós só podemos vencer a natureza obedecendo-a. Então, em resumo, é isso: respeitar o caminho das águas, a função que a mata tem na proteção do solo, conhecer, reconhecer e respeitar o ambiente natural e a partir dele propor um modelo de ocupação.
Como garantir que a ocupação urbana seja realizada de maneira justa e inclusiva?
De maneira geral, é esse o papel da gestão pública municipal. É para isso que existem os instrumentos de ordenação do uso do solo. Porque se nós deixarmos a ocupação do solo à mercê do mercado, da especulação imobiliária, o valor da terra é regulado pela fragilidade, pela acessibilidade, então a população de menor poder aquisitivo vai morar na periferia ou nas margens dos rios. Com isso você tem um problema de acesso aos serviços do município e a população fica num espaço de fragilidade. Eu diria que o ponto chave para uma cidade mais justa é a habitação. O Plano Diretor, a Lei de Uso e Ocupação, a Lei de Zoneamento e o Plano de Habitação têm esse papel de evitar que todo o território urbano seja leiloado pelo mercado para essa população, que essa população acesse as áreas de mananciais, de declividade e, ao mesmo tempo, dar acesso a uma habitação digna a essa população. Mas infelizmente muitas vezes nós não vemos isso acontecer, o Estado reforça as desigualdades, esse valor desigual da terra, colocando o conjunto habitacional na periferia, o que é muito preocupante. Nesse sentido, é fundamental que a administração municipal chame a participação popular para todas as decisões, que essas decisões não sejam só do Estado, mas que elas sejam feitas mediante participação pública, uma participação instrumentada. Além de chamar a população, o município deve dar à população condições para que ela entenda os assuntos, um processo de educação participativa mesmo. É preciso chamar várias esferas de representativas da sociedade e fazer com que esse processo seja participativo, de modo que o poder público represente a sociedade como um todo, as demandas dos grupos, de modo a fazer esse processo de gestão territorial do município de forma justa e igualitária.