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meninas vivem sem banheiro ou chuveiro em casa
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meninas não têm acesso a água canalizada em seus domicílios, e 6,5 milhões vivem em casas sem ligação à rede de esgoto
Entenda como menstruação e meio ambiente são temas relacionados e como acabar com o problema da pobreza menstrual faz parte dos objetivos de desenvolvimento sustentável
Se você é uma pessoa que não menstrua, gostaria de lhe propor um exercício de imaginação. Pense que você é uma menina pobre que vive em uma pequena cidade, no interior do Brasil. Você está entrando na adolescência e já conheceu as muitas nuances da palavra “pobreza”. Seus pais nunca tiveram muitas oportunidades na vida, a comida no prato está cada dia mais escassa e paira uma dúvida se ir para escola ou ajudar nas tarefas de casa e em trabalhos informais não seria a melhor opção.
Um dia, ao acordar, você percebe o lençol manchado de vermelho. Imagine que você não tem nenhuma informação sobre o funcionamento natural do próprio corpo e não conta com a abertura para um diálogo esclarecedor sobre o tema com nenhum adulto de referência. Com um misto de medo e vergonha, você procura qualquer coisa para estancar o fluxo de sangramento. A ideia de um absorvente descartável nem passa pela mente, porque, muito provavelmente, levando em consideração o quadro de insegurança alimentar da casa, um absorvente assim seria artigo de luxo até para sua mãe.
Todos os meses, então, quando a cena se repete, você passa a usar jornais, pedaços de papel ou outros materiais impróprios e desconfortáveis como alternativa para resolver o problema. As faltas na escola se tornam recorrentes, mensais, e no fim de um semestre, as suas notas no boletim denunciam uma dificuldade de aprendizado considerável. Atividades simples como praticar esporte, por exemplo, também ficam comprometidas, porque, durante o período de menstruação, além do desconforto natural, você se preocupa muito se o sangue que você não entende por que sempre vem vai manchar ou não a roupa ao se movimentar. E é aí que você decide largar a escola. Difícil, não é?
Se você é uma pessoa que menstrua, muito provavelmente já passou em algum grau por situações parecidas, já que tudo o que foi descrito acima é mais comum e mais real do que se imagina. Muito embora não existam ainda dados específicos sobre a pobreza menstrual no Brasil, é possível traçar um panorama cruzando informações em aspectos que influenciam diretamente essa realidade. É o caso da desigualdade social, da quantidade de famílias que vivem abaixo da linha da pobreza, dos índices de insegurança alimentar, da falta de acesso à água potável, ao serviço de saneamento básico e à educação sexual. O simples fato de ter ou não um banheiro na escola com condições mínimas (como a presença de lixeiro, papel higiênico, água potável e sabão) já são determinantes para a exclusão de meninas durante os períodos de menstruação.
Algo complexo e multidisciplinar
De acordo com o relatório de maio de 2021 “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos”, publicado pelo Fundo das Nações Unidas pela Infância (Unicef) e pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a pobreza menstrual envolve uma série de questões culturais (como o tabu que gira em torno da menstruação) e sociais (como a acesso ao saneamento básico e à educação). Resolver essa questão, de igual maneira, deveria ser um trabalho multidisciplinar. A situação, assim como está, “contribui para retroalimentar ciclos transgeracionais de inequidades de gênero, raça, classe social, além de impactar negativamente a trajetória educacional e profissional”.
No Brasil, a pobreza menstrual está dentro de um contexto maior e mais problemático. De acordo com os dados do relatório da UNFPA, cerca de 13,6 milhões de habitantes (aproximadamente 6,5% da população) vivem em condições de extrema pobreza, e cerca de 51,5 milhões de pessoas estão abaixo da linha de pobreza (1 a cada 4 brasileiros vivendo com menos de R$ 436,00 ao mês). De modo que seria impossível pensar na solução para o problema da pobreza menstrual sem levar em consideração a pobreza como um todo, a desigualdade social e o impacto de tudo isso já nesta geração.
O documento destaca ainda o fato de que “o desconhecimento sobre o cuidado da saúde menstrual pode afetar mesmo as pessoas que não estão em situação de pobreza. Elas podem enfrentar a falta de produtos para a adequada higiene menstrual por considerarmos o absorvente como um produto supérfluo ou ainda porque, em geral, meninas de 10 a 19 anos não decidem sobre a alocação do orçamento da família, sobrando pouca ou nenhuma renda para ser utilizada para esse fim, com a compra de produtos e insumos que ajudem a garantir a dignidade menstrual. Além disso, não falar sobre a menstruação já é um jeito de falar sobre ela. A omissão demonstra preconceitos perpetuados no dia a dia. Não nomear a menstruação usando no lugar eufemismos como ‘estar naqueles dias’, ‘estar de chico’, ‘regras’, significa tornar invisível um fenômeno fisiológico e recorrente, além de alimentar mitos e tabus extremamente danosos às mulheres, meninas e pessoas que menstruam de maneira geral”.
Confira alguns dados do relatório da UNICEF sobre Pobreza Menstrual no Brasil:
meninas vivem sem banheiro ou chuveiro em casa
meninas não têm acesso a água canalizada em seus domicílios, e 6,5 milhões vivem em casas sem ligação à rede de esgoto
de meninas sofrem com pelo menos uma privação de higiene nas escolas. Isso inclui falta de acesso a absorventes e banheiros com sabonetes
Mais de
de meninas não têm acesso a itens minimos de cuidados menstruiais nas escolas. Meninas negras têm quase três vezes mais chanves de viver nestas condições do que as brancas e 37% delas moram em locais sem saneamento básico, comparado a 24% das brancas
Um clã e um convite a se conhecer e se respeitar
O conceito da “cultura permanente” surgiu na década de 70 e enfatiza um modo de vida integrado com a natureza, ou seja, alia o conhecimento científico com o conhecimento tradicional ou popular assegurando a permanência do ser humano na Terra. Ela está embasada em três pilares: cuidar do Planeta, cuidar das pessoas e cuidar do futuro com uma partilha justa que podem ser aplicados a diferentes aspectos da vida, desde o dia a dia como em sistemas agrícolas por exemplo.
“A ideia do Clã era reunir pessoas que menstruam para refletir sobre o autocuidado desse corpo terra e desse corpo físico. De que jeito a gente cuida do nosso corpo, dos nossos ciclos. A gente reconhece esses ciclos que se assemelham tanto com os ciclos da natureza? A ideia era reunir pessoas que pensam sobre o corpo com uma ideia mais orgânica”, conta Jane
Mas ela não parou por aí. Estudou noções da medicina tradicional chinesa, sobre saúde mental e como isso atravessa a saúde física. “Está tudo integrado: físico, mental, espiritual. Temos uma mania equivocada de separar as coisas”.
Com o Clã Livre, Jane organizou oficinas em diversas comunidades pelo Brasil. Partindo da ideia de ensinar as mulheres a produzirem absorventes de pano, ela conta que as conversas que naturalmente surgem durante o processo são igualmente formativas e envolvem o cuidado com o corpo, a saúde feminina e a desmistificação de tantos mitos.
“Quando falo do corpo terra e desse corpo útero, posso usar do mesmo raciocínio: os produtos descartáveis fazem mal para os dois”.
Jane, nesse ponto, está em sintonia com Chris Bobel, pesquisadora do grupo Menstrual Health & Gender Justice da Columbia University. Uma das principais discussões da produção científica de Bobel trata sobre a ideia do uso de absorventes descartáveis como sinal de uma forma superior de não só conter a menstruação, como de resolver o problema da pobreza menstrual. A pesquisadora alerta que isso pode ser uma apropriação da saúde menstrual pelo capitalismo.
De acordo com o relatório da UNFPA, esse é “um alerta interessante porque é louvável que se incorpore cada vez mais tecnologias para o bem-estar das mulheres, mas é importante que se observe que, ao dar uma conotação negativa para a utilização de ‘pedaços de pano’, ‘roupas e meias’ como sintoma da pobreza menstrual, damos a impressão equivocada de que todos os produtos feitos de tecido com o fim de manejar a menstruação seriam ultrapassados, anti-higiênicos ou anacrônicos, opinião compartilhada por inúmeras outras pesquisadoras e ativistas menstruais. Absorventes de tecido e calcinhas menstruais com design pensado para este fim (e não usos improvisados, como meias, roupas ou outros panos velhos dobrados) são soluções importantes (e reutilizáveis) para a garantia da higiene e saúde menstrual, reduzindo o problema do descarte de plásticos de uso único”.
Lavável e reutilizável
Confortável para usar
Bom custo x benefício
Hipoalergênico
Até 12 horas de uso
Tecido impermeável sem vazamentos
Mas tudo tem um porém
Quando o assunto é o uso de descartáveis, porém, é preciso considerar que existem pessoas que menstruam sem acesso a água potável e serviço de saneamento básico. Como é o caso das pessoas em situação de rua e, em certo sentido, também da população carcerária.
O Relatório sobre Pobreza Menstrual no Brasil, de 2021, faz um alerta sobre esse ponto da seguinte maneira: “Dentro da questão ambiental, o descarte de plásticos de uso único gerado pelo uso de absorventes descartáveis é, sem dúvidas, uma questão muito relevante no cenário atual de degradação do meio ambiente. Entretanto, é preciso tomar cuidado para não utilizarmos de um discurso ambiental que ignora o contexto de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social, excluídas do acesso à água encanada e esgotamento sanitário, por exemplo, como em algumas regiões das favelas ou das pessoas em situação de rua, que ficariam impossibilitadas de utilizar soluções reutilizáveis em virtude da impossibilidade de higienização adequada desses produtos para uso futuro. Portanto, mais um desafio para enfrentarmos a pobreza menstrual é conhecermos as condições em que as pessoas que menstruam estão inseridas, não existindo, portanto, uma solução única para o problema. Aqui, reforçamos também que é importante incorporar todas as soluções disponíveis para o cuidado menstrual adequado, entendendo que necessidades e contextos diferentes exigem, é claro, manejos diferentes”.
Em um guia de 2017 sobre o enfrentamento de crises humanitárias, a médica Marni Sommer afirma que, para a elaboração de políticas públicas relacionadas aos cuidados com a menstruação, é importante conhecer as preferências das pessoas que menstruam. Dessa maneira, pode-se atender suas necessidades da melhor maneira possível. “Além da estigmatização de algumas formas de coletores ou absorventes menstruais, outros fatores, quando mal abordados, podem atrapalhar o enfrentamento da pobreza menstrual”, alerta o relatório da UNFPA.
Está tudo conectado
Quando se fala em meio ambiente, é impossível pensar no cuidado com a natureza sem levar em consideração, também, o bem-estar das populações, estejam elas em grandes cidades ou em comunidades dos povos originários. Apesar de parecerem desconexos, os temas sociais estão dentro do meio ambiente, porque não existe nada no mundo que, feito de uma maneira excludente, não impacte uma realidade maior. A pobreza menstrual, por exemplo, está relacionada a pelo menos sete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), presentes na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU).
Neste sentido, o projeto Recarrega, que visa a recarga hídrica de bacias hidrográficas, idealizado pelo Agir Ambiental junto com a Fundación Avina, busca um olhar mais integrado às questões sociais e ambientais. Sobre o projeto, Rafael Girão, coordenador de sustentabilidade do Agir reflete: “O fato de trabalhar com a água no Recarrega nos possibilita pensar as questões relacionadas à renda e, também, à situação das mulheres. O Recarrega em São Paulo trabalha com mulheres em situação de vulnerabilidade e um dos pontos que a gente percebe que pode gerar essa desigualdade salarial é a pobreza menstrual”. Favorecendo a presença de água potável no território, o projeto pensou em fornecer oficinas de produção de absorventes de pano com as mulheres, o que pode vir a se transformar, também, em uma fonte de renda.
Confira quais dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para 2030 da ONU estão relacionados com o problema da pobreza menstrual, em ordem de maior identificação com o tema:
Garantir que homens e mulheres tenham as mesmas oportunidades
Acabar com a pobreza em todas as suas formas.
Garantir uma vida saudável para todos.
Assegurar a gestão saudável da água e do saneamento para todos.
Promover o crescimento econômico inclusivo e sustentável, com trabalho para todos.
Suscitar a mudança nos padrões de produção e consumo através da sustentabilidade.
Independentemente de ser uma pessoa que menstrua ou não, informações seguras sobre a menstruação deveriam constar nos processos pedagógicos formativos, dentro e fora das escolas. É o que afirma a campanha #HeforShe. No contexto da campanha foi reforçada a importância da educação menstrual. A desinformação inclusive de pessoas adultas sobre a menstruação pode se transformar em uma barreira no relacionamento social, na falta de empatia com as pessoas que menstruam e que estão no ambiente escolar, no trabalho ou em casa.
O relatório sobre Pobreza Menstrual no Brasil conclui afirmando que perpetuar a invisibilidade do problema menstrual é negligenciar uma realidade palpável para milhares de pessoas no Brasil. “A partir dessa negligência, pode surgir a urgência de remediar os problemas, evitáveis, decorrentes da falta de manejo adequado da menstruação. Problemas esses que seriam facilmente prevenidos com os devidos investimentos em infraestrutura e acesso aos produtos menstruais. Além disso, quando vivenciada desde a infância, a pobreza menstrual pode resultar ainda em sofrimentos emocionais que dificultam o desenvolvimento de uma mulher adulta com seus potenciais plenamente explorados”.
E você, que leu até aqui, o que pensa sobre isso?
Como você já deve ter entendido até aqui, pobreza menstrual é um tema complexo, que exige muita reflexão e que se capilariza em diversos outros temas. Se você se interessou em continuar explorando os assuntos relacionados a isso, separamos abaixo alguns links que podem te ajudar no começo dessa aventura:
Edição | Ana Wolfe
Reportagem | Gustavo Monteiro
Infografia e design gráfico | Tayná Gonçalves
Foto de capa | pexels